O AFILHADO DO DIABO OU
OS TRÊS CAVALOS ENCANTADOS
Reginaldo Afonso era
chefe de uma numerosa família. Trabalhava de sol a sol, plantando
legumes e frutas que vendia no mercado aos domingos.
Sua mulher, Maria,
fazia todo o serviço doméstico, e, ajudada pelos filhos mais
velhos, ia ao mato apanhar lenha. Sábado, à noite, descascava
feijão, debulhava e empacotava o milho, amarrava os molhos de
verduras e acomodava tudo nos balaios, que seu marido levava às
costas, para o mercado.
Embora trabalhassem
muito, viviam na maior miséria, havendo dias em que nem pão tinham
para os filhos.
O menorzinho, já com
dois meses, deitado em um balaio ao canto, dormia serenamente, sem
dar maiores trabalhos à mãe.
Eis que, numa noite,
quando arrumava os balaios de verduras e legumes, Maria disse:
— Olhe, marido, o
tempo vai passando, e o nosso pequenino não foi ainda batizado. Veja
se escolhe os padrinhos entre os seus companheiros do mercado.
— Amanhã, mulher, eu
arranjo o padrinho para o menino, ainda que seja o diabo.
Mal acabara de falar,
parava á porta da choupana de Reginaldo Afonso uma carruagem
riquíssima.
Um senhor magro, alto e
bem vestido, desceu e bateu na porta.
Reginaldo Afonso pegou
a lamparina e foi atender. Um vento forte apagou a luz, ficando todos
às escuras.
Enquanto isso, o tal
senhor tirou do bolso um isqueiro e acendeu de novo a lamparina.
— É o Sr. Reginaldo
Afonso? Soube que procura um padrinho para seu filho e quero saber se
mo quer dar como afilhado. Sou riquíssimo, não tenho filhos e
cuidarei dele como se fosse meu próprio filho. Desejo leva-lo agora
comigo. Em recompensa, deixo esta bolsa de dinheiro, para remediar as
suas dificuldades do momento.
A mãe, olhando o
cavalheiro, embora triste, entregou-lhe o filho, na esperança de que
o menino viesse a ser educado da melhor maneira.
Tomando o menino nos
braços, o desconhecido entrou na carruagem que partiu veloz.
Maria levantou as mãos
e disse:
— Que Deus o proteja
e o traga sempre em seus caminhos!
II
O cavalheiro que levara
o menino era o Diabo, que ouvira toda a conversa e se disfarçara
daquela maneira, para poder levar a criança.
O menino foi para o
palácio de seu protetor, onde nada lhe faltava.
Logo cresceu e, muito
vivo, brincava pelos parques imensos do palácio, recebendo aulas do
seu próprio padrinho, que revestira seu quarto de grandes estantes
repletas dos mais belos livros.
Satã Segundo, como era
chamado o menino, começara a perceber que o palácio era isolado do
resto do mundo.
Suas terras pareciam
não ter fim e, por mais que andasse, não atingia nunca outros
domínios.
Seus parques, tão
belos, não tinha pássaros, e a fonte, que corria debaixo das
grandes árvores, era silenciosa.
E o mistério que
cercava o palácio do seu padrinho ia, aos poucos, incomodando Satã
Segundo.
III
Um dia, tendo o Diabo
de fazer uma viagem mais longa, chamou Satã Segundo, que já era
mocinho e lhe disse:
— Preciso de fazer
uma viagem e, como me demoro alguns dias, deixo com você as minhas
chaves. Pode correr todo o palácio, abrir armários e gavetas que
quiser, mas — preste atenção — proíbo-lhe entrar nos quartos
destas três chaves. Nem tente entrar neles, senão...
Demorou-se o Diabo mais
de um mês em sua viagem e, de volta, recebeu de Satã Segundo as
chaves, tais como as havia entregado. O menino fora fiel.
Tempos depois, fez Satã
uma segunda viagem, entregando ao afilhado as chaves do palácio,
recomendando-lhe energicamente que não entrasse nos quartos
proibidos.
Satã Segundo não pôde
conter a curiosidade.
Dia a dia estava mais
preocupado com o mistério que o cercava.
Mal o Diabo partiu,
decidiu-se abrir os quartos, certo de que o padrinho viria a sabe-lo.
Entrou no primeiro.
Ficou deslumbrado. Era um quarto todo forrado de cobre, onde se via
um cavalo russo-queimado, muito lindo, que comia carne fresca.
Abriu o segundo
aposento. Mais admirado ficou. O quarto era de prata, e um cavalo
branco comia também carne fresca num cocho de prata.
Abriu o terceiro
aposento e gritou de surpresa. Era todo de ouro. Um belo leão, de
enorme juba e de olhar feroz, comia capim e não carne. No fundo de,
havia uma escrivaninha com várias gavetas, cheias de papeizinhos
dobrados, azuis e brancos. Armas de toda a espécie forrava as
paredes do aposento.
Que fez Satã Segundo?
Tirou o capim do cocho do leão e distribuiu-o entre os dois cavalos.
Tomando destes a carne, colocou-a no cocho onde comia o leão.
— Obrigado, Satã
Segundo, disseram-lhe os animais, a um mesmo tempo.
O russo- queimado,
saindo de seu lugar, aproximou-se de Satã Segundo e lhe disse:
— Não há tempo a
perder. Seu padrinho está quase a chegar e, se o encontrar aqui, não
sei o que lhe pode acontecer. Vá à escrivaninha. Tire dois papéis,
um azul e outro branco, e vista-se com a melhor roupa que encontrar.
Pegue uma boa espada, monte em mim. Leve o cavalo branco pela rédea
e saia logo, mas mergulhe, primeiro a cabeça no caldeirão de ouro.
Depressa! Seu padrinho está quase a chegar!
Satã Segundo, trêmulo
de susto, mas orientado pelo cavalo russo-queimado, fez tudo num
átimo.
Depois de ter molhado
os cabelos, que ficaram lindíssimos, montou o russo-queimado e levou
pela rédea o cavalo branco.
Partiram velozmente.
IV
O Maldito não tardou a
chegar.
Não encontrando o
afilhado, adivinhou tudo.
Correu os quartos que
encontrou abertos, não vendo o cavalo russo-queimado, nem o branco,
compreendeu que o menino fugira.
Montou no seu cavalo
preto e saiu-lhe ao encalço. Como havia vento, voou até as nuvens
e, lá de cima, avistou o fujão.
Desceu rápido e quase
o alcançava, quando o russo-queimado lhe disse:
— Depressa, solte o
papelzinho branco!
Sem se voltar, Satã
Segundo atirou o papelzinho, e um imenso nevoeiro formou-se atrás
dele.
O Diabo deu de esporas,
tentou romper o nevoeiro, mas, quando o conseguiu, Satã Segundo já
estava longe.
De novo, o Diabo julgou
que pegava o afilhado, mas este, a conselho do cavalo russo-queimado,
atirou o papelzinho azul.
Formou-se, então, um
espinheiro intransponível.
O Diabo disse a seu
cavalo preto:
— Se conseguir passar
comigo este espinheiro, eu o desencantarei.
O cavalo preto, que
sabia que estava prestes a desencantar-se pelas artes do menino,
disse-lhe:
— Tire-me, então, os
arreios.
Mas, ao atingirem o
meio do espinheiro, o cavalo atirou o Diabo no chão e seguiu sozinho
ao encontro dos fugitivos.
Passados alguns dias,
Satã Segundo e os três cavalos se dirigiram a um dos mais ricos
reinos, governados por um rei poderoso e justo.
Aí, o russo-queimado
disse a Satã Segundo:
— Ficaremos por aqui.
Ninguém nos descobrirá, porque ficaremos encantados sob a forma de
pedras. Deixe conosco a sua roupa, suas armas e continue sempre para
frente. Encontrará um pouco distante daqui um boi morto. Tire-lhe a
bexiga e cubra com ela a cabeça, para esconder os seus cabelos que
chamam muito a atenção. Vá e siga o seu destino. Talvez o
auxiliemos, se precisar de nós.
Satã Segundo seguiu à
risca as recomendações de seus amigos. Ao chegar à cidade vizinha,
encontrou-se com o jardineiro do palácio do rei, que andava à busca
de um ajudante. Simpatizando com ele, o jardineiro tomou-o a seu
serviço.
No palácio, Satã
Segundo conseguiu a amizade de todos.
Era trabalhador,
honesto, e prestimoso.
Achavam-no muito
esquisito por não ter um só fio de cabelo, o que o tornava muito
feio. Daí o apelidaram de Feio.
Certa vez, em que todos
haviam saído para as caçadas, Feio, julgando-se sozinho, tirou a
bexiga que lhe cobria a cabeça e apareceu com seus lindíssimos
cabelos de ouro.
A mais moça das filhas
do rei viu-o e ficou maravilhada com a sua beleza, mas guardou
segredo do que vira.
Passado algum tempo,
houve no palácio importantes cavalhadas às quais compareceram todos
os súditos do rei, bem como reis, príncipes, princesas e fidalgos
de outros reinos vizinhos.
Feio teve a idéia de
chamar os seus cavalos amigos, e combinar com eles uma partida, e
assim fez.
À hora combinada o
russo-queimado surgiu, então, deslumbrantemente arreado. Feio,
vestido de suas melhores roupas, montou nele e entrou na liça,
ganhando todos os prêmios.
Só a filha mais moça
do rei desconfiava daquele cavaleiro, mas continuou a guardar seu
segredo.
No segundo dia, à hora
das corridas, estavam todos curiosos, quando apareceu o cavaleiro
misterioso, ricamente vestido, montando o melhor animal, mais garboso
e valente do que todos os cavaleiros presentes, e com aquela
cabeleira dourada, brilhando aos raios do sol.
O rei, muito intrigado,
deu ordem a um batalhão que o prendesse logo depois das corridas.
Feio não demonstrou o
menor receio. Entrou na liça e dado o sinal de partida, avançou,
ganhado o prêmio.
Agradecendo ao povo,
com um sinal de cabeça, o cavaleiro parou diante da princesa mais
moça, filha do rei, e, oferecendo-lhe o prêmio. De repente,
disparou o cavalo que desapareceu nos ares, quase por encanto.
No terceiro dia, as
coisas correram como nos dias anteriores.
Mas o rei havia
colocado, em todas as saídas, soldados armados de baionetas, a fim
de aprisionarem o jovem cavaleiro.
Feio, cujo êxito devia
a seus cavalos amigos, ganhou o prêmio pela terceira vez.
Oferecendo-o à jovem princesa, fugiu inesperadamente, sem que o
atingissem as baionetas e o chuveiro de balas disparado contra ele.
Ninguém pôde
desconfiar quem era o vencedor dos torneios, apesar da grande
curiosidade dos fidalgos.
Só a princesinha sabia
de quem se tratava.
Só a princesinha
sabia de quem se tratava.
VI
Passado algum tempo, o
rei anunciava pelos seus arautos, que um leão feroz devastava sua
mata e arredores de seu palácio. A quem matasse o terrível leão,
daria sua filha mais velha em casamento.
Feio correu a consultar
o russo-queimado, se devia tentar tal aventura.
— Ora! Decerto! O
leão é o tal, enviado por Satã, para fazer-lhe mal. Ouça o que
deve fazer. Arranje um escudo de espelho. Tome sua lança e vá.
Assim que o leão vir sua imagem refletida no espelho ficará tonto.
Com a mão firme dê-lhe um golpe pela nuca. Com um golpe, só um, o
matará. Tome cuidado para não precisar ataca-lo duas vezes. Morto,
corte-lhe a ponta da língua e deixe-o onde cair. Guarde o segredo de
sua façanha.
Feio agiu exatamente
com lhe aconselhara o russo-queimado.
Quando o rei soube que
o leão fora encontrado morto, esperou que o herói aparecesse para
reclamar a princesa, cuja mão fora prometida. Ficou desapontado,
vendo passarem os dias sem que ninguém aparecesse.
Porém, sentindo-se
doente, pediu às três filhas que escolhessem seus maridos dentre os
membros fidalgos conhecidos.
A princesinha pediu ao
pai que consentisse em seu casamento com Feio, o ajudante do
jardineiro.
O pai, que estimava
muito a filha, respeitou-lhe a escolha, embora fosse o moço humilde,
porque fazia do moço o melhor conceito de honesto. Trabalhador e
educado.
As duas mais velhas
escolheram dois príncipes poderosos que começaram logo por declarar
que não queriam para cunhado pessoa tão insignificante, como Feio.
Apesar e tudo, o rei
manteve sua palavra; a princesinha casaria com Feio.
Daí depois, o Rei
mandou prepara um banquete para o qual as aves deviam ser caçadas
pelos seus futuros genros.
Vestido de humilde
caçador, Feio partiu cedo para as matas do rei, matou com facilidade
dezenas de aves.
Ia retirar-se, quando
se encontrou com os dois príncipes que chegavam. Como não o
tivessem reconhecidos, propuseram-lhe comprar as aves.
Feio aceitou a
proposta, mas exigiu recibo.
À hora do banquete, no
meio da maior festa, o rei pediu que cada um dos futuros genros
contasse sua maior aventura.
Um deles levantou-se
tirando do bolso o toco da língua do leão, disse:
— Até hoje ninguém
soube quem matou o leão que assolava as matas e arredores do palácio
real. Aguardava o momento para apresentar-me. Esta foi a minha maior
façanha.
O segundo disse:
— Tenho aventuras
notáveis, mas vou contar apenas a última que é esta: as aves, que
comemos neste jantar, foram caçadas por mim. Eram centenas que, com
o meu tiro certeiro, caíram uma após outra!
Os dois orgulhosos
príncipes olharam com desprezo para Feio e cochichavam contra ele
com suas noivas, o que muito fazia sofrer a princesinha.
Levantou-se, afinal,
Feio e, calado, como senão tivesse o que dizer, olhava para todos,
indignado com o desprezo dos dois. Afinal disse:
— Majestade, duas
coisas interessantes tenho para contar neste momento. A primeira é
que, numa noite, esperei o leão que assolava o reino e o matei com
um golpe, um só golpe, de minha lança. A outra é que hoje pela
manhã cacei as aves que acabamos de comer, além de outras que devem
encher ainda a real despensa.
Olharam-se todos, sem
compreender o que Feio dizia, mas os dois outros fidalgos, pondo-se
de pé iam agredi-lo, quando Feio, com toda a serenidade, disse:
— Estão aqui,
majestade, as provas do que disse: a ponta da língua do leão e o
recibo da compra das aves.
Dizendo isso, arrancou
a bexiga de boi que lhe cobria a cabeça, mostrando os seus formosos
cabelos de ouro.
Todos reconheceram nele
o cavaleiro misterioso das cavalhadas. Naquela hora, ouviu-se lá
fora o relincho alegre de três cavalos.
Acabavam de
desencantar-se, transformando-se em três príncipes, belos e jovens:
haviam cumprido a pena de grave crime.
No meio da confusão
daquela hora, todos procuraram os dois príncipes noivos das duas
princesas mais velhas. Haviam desaparecido, envergonhados de sua má
ação.
Os dois jovens, que se
haviam desencantado, apaixonou-se pelas duas princesas e casaram-se
com elas.
Quanto ao terceiro
príncipe, partiu na mesma hora para o reino de seu pai onde o
aguardavam o trono e uma jovem princesa para noiva.
Feio, que se ficou
chamando depois o Príncipe Maravilhoso, casou com a princesinha.
Veio a saber de sua história, da angústia da sua velha mãe que
todos os dias, ajoelhada pedia a Deus que amparasse seu filho
desaparecido, com o misterioso cavalheiro.
Conseguiu encontrar
seus pais e irmãos, amparando a todos.
Conta-se que todos
foram muito felizes.
Li e fui transportado à minha infância... Meu livro didático: "As Mais Belas Histórias. Que lembrança boa!
ResponderExcluirContavam essa estøria para minha mãe quando criança. E ela me contava também.
ResponderExcluirTenho 70 anos.Tenho o livro original de Lúcia Casa Santa.
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