quinta-feira, 1 de maio de 2014

MERECE SER LEMBRADO II -- O AFILHADO DO DIABO


O AFILHADO DO DIABO OU OS TRÊS CAVALOS ENCANTADOS

Reginaldo Afonso era chefe de uma numerosa família. Trabalhava de sol a sol, plantando legumes e frutas que vendia no mercado aos domingos.
Sua mulher, Maria, fazia todo o serviço doméstico, e, ajudada pelos filhos mais velhos, ia ao mato apanhar lenha. Sábado, à noite, descascava feijão, debulhava e empacotava o milho, amarrava os molhos de verduras e acomodava tudo nos balaios, que seu marido levava às costas, para o mercado.
Embora trabalhassem muito, viviam na maior miséria, havendo dias em que nem pão tinham para os filhos.
O menorzinho, já com dois meses, deitado em um balaio ao canto, dormia serenamente, sem dar maiores trabalhos à mãe.
Eis que, numa noite, quando arrumava os balaios de verduras e legumes, Maria disse:
— Olhe, marido, o tempo vai passando, e o nosso pequenino não foi ainda batizado. Veja se escolhe os padrinhos entre os seus companheiros do mercado.
— Amanhã, mulher, eu arranjo o padrinho para o menino, ainda que seja o diabo.
Mal acabara de falar, parava á porta da choupana de Reginaldo Afonso uma carruagem riquíssima.
Um senhor magro, alto e bem vestido, desceu e bateu na porta.
Reginaldo Afonso pegou a lamparina e foi atender. Um vento forte apagou a luz, ficando todos às escuras.
Enquanto isso, o tal senhor tirou do bolso um isqueiro e acendeu de novo a lamparina.
— É o Sr. Reginaldo Afonso? Soube que procura um padrinho para seu filho e quero saber se mo quer dar como afilhado. Sou riquíssimo, não tenho filhos e cuidarei dele como se fosse meu próprio filho. Desejo leva-lo agora comigo. Em recompensa, deixo esta bolsa de dinheiro, para remediar as suas dificuldades do momento.
A mãe, olhando o cavalheiro, embora triste, entregou-lhe o filho, na esperança de que o menino viesse a ser educado da melhor maneira.
Tomando o menino nos braços, o desconhecido entrou na carruagem que partiu veloz.
Maria levantou as mãos e disse:
— Que Deus o proteja e o traga sempre em seus caminhos!

II

O cavalheiro que levara o menino era o Diabo, que ouvira toda a conversa e se disfarçara daquela maneira, para poder levar a criança.
O menino foi para o palácio de seu protetor, onde nada lhe faltava.
Logo cresceu e, muito vivo, brincava pelos parques imensos do palácio, recebendo aulas do seu próprio padrinho, que revestira seu quarto de grandes estantes repletas dos mais belos livros.
Satã Segundo, como era chamado o menino, começara a perceber que o palácio era isolado do resto do mundo.
Suas terras pareciam não ter fim e, por mais que andasse, não atingia nunca outros domínios.
Seus parques, tão belos, não tinha pássaros, e a fonte, que corria debaixo das grandes árvores, era silenciosa.
E o mistério que cercava o palácio do seu padrinho ia, aos poucos, incomodando Satã Segundo.

III

Um dia, tendo o Diabo de fazer uma viagem mais longa, chamou Satã Segundo, que já era mocinho e lhe disse:
— Preciso de fazer uma viagem e, como me demoro alguns dias, deixo com você as minhas chaves. Pode correr todo o palácio, abrir armários e gavetas que quiser, mas — preste atenção — proíbo-lhe entrar nos quartos destas três chaves. Nem tente entrar neles, senão...
Demorou-se o Diabo mais de um mês em sua viagem e, de volta, recebeu de Satã Segundo as chaves, tais como as havia entregado. O menino fora fiel.
Tempos depois, fez Satã uma segunda viagem, entregando ao afilhado as chaves do palácio, recomendando-lhe energicamente que não entrasse nos quartos proibidos.
Satã Segundo não pôde conter a curiosidade.
Dia a dia estava mais preocupado com o mistério que o cercava.
Mal o Diabo partiu, decidiu-se abrir os quartos, certo de que o padrinho viria a sabe-lo.
Entrou no primeiro. Ficou deslumbrado. Era um quarto todo forrado de cobre, onde se via um cavalo russo-queimado, muito lindo, que comia carne fresca.
Abriu o segundo aposento. Mais admirado ficou. O quarto era de prata, e um cavalo branco comia também carne fresca num cocho de prata.
Abriu o terceiro aposento e gritou de surpresa. Era todo de ouro. Um belo leão, de enorme juba e de olhar feroz, comia capim e não carne. No fundo de, havia uma escrivaninha com várias gavetas, cheias de papeizinhos dobrados, azuis e brancos. Armas de toda a espécie forrava as paredes do aposento.
Que fez Satã Segundo? Tirou o capim do cocho do leão e distribuiu-o entre os dois cavalos. Tomando destes a carne, colocou-a no cocho onde comia o leão.
— Obrigado, Satã Segundo, disseram-lhe os animais, a um mesmo tempo.
O russo- queimado, saindo de seu lugar, aproximou-se de Satã Segundo e lhe disse:
— Não há tempo a perder. Seu padrinho está quase a chegar e, se o encontrar aqui, não sei o que lhe pode acontecer. Vá à escrivaninha. Tire dois papéis, um azul e outro branco, e vista-se com a melhor roupa que encontrar. Pegue uma boa espada, monte em mim. Leve o cavalo branco pela rédea e saia logo, mas mergulhe, primeiro a cabeça no caldeirão de ouro. Depressa! Seu padrinho está quase a chegar!
Satã Segundo, trêmulo de susto, mas orientado pelo cavalo russo-queimado, fez tudo num átimo.
Depois de ter molhado os cabelos, que ficaram lindíssimos, montou o russo-queimado e levou pela rédea o cavalo branco.
Partiram velozmente.

IV

O Maldito não tardou a chegar.
Não encontrando o afilhado, adivinhou tudo.
Correu os quartos que encontrou abertos, não vendo o cavalo russo-queimado, nem o branco, compreendeu que o menino fugira.
Montou no seu cavalo preto e saiu-lhe ao encalço. Como havia vento, voou até as nuvens e, lá de cima, avistou o fujão.
Desceu rápido e quase o alcançava, quando o russo-queimado lhe disse:
— Depressa, solte o papelzinho branco!
Sem se voltar, Satã Segundo atirou o papelzinho, e um imenso nevoeiro formou-se atrás dele.
O Diabo deu de esporas, tentou romper o nevoeiro, mas, quando o conseguiu, Satã Segundo já estava longe.
De novo, o Diabo julgou que pegava o afilhado, mas este, a conselho do cavalo russo-queimado, atirou o papelzinho azul.
Formou-se, então, um espinheiro intransponível.
O Diabo disse a seu cavalo preto:
— Se conseguir passar comigo este espinheiro, eu o desencantarei.
O cavalo preto, que sabia que estava prestes a desencantar-se pelas artes do menino, disse-lhe:
— Tire-me, então, os arreios.
Mas, ao atingirem o meio do espinheiro, o cavalo atirou o Diabo no chão e seguiu sozinho ao encontro dos fugitivos.
Passados alguns dias, Satã Segundo e os três cavalos se dirigiram a um dos mais ricos reinos, governados por um rei poderoso e justo.
Aí, o russo-queimado disse a Satã Segundo:
— Ficaremos por aqui. Ninguém nos descobrirá, porque ficaremos encantados sob a forma de pedras. Deixe conosco a sua roupa, suas armas e continue sempre para frente. Encontrará um pouco distante daqui um boi morto. Tire-lhe a bexiga e cubra com ela a cabeça, para esconder os seus cabelos que chamam muito a atenção. Vá e siga o seu destino. Talvez o auxiliemos, se precisar de nós.
Satã Segundo seguiu à risca as recomendações de seus amigos. Ao chegar à cidade vizinha, encontrou-se com o jardineiro do palácio do rei, que andava à busca de um ajudante. Simpatizando com ele, o jardineiro tomou-o a seu serviço.
No palácio, Satã Segundo conseguiu a amizade de todos.
Era trabalhador, honesto, e prestimoso.
Achavam-no muito esquisito por não ter um só fio de cabelo, o que o tornava muito feio. Daí o apelidaram de Feio.
Certa vez, em que todos haviam saído para as caçadas, Feio, julgando-se sozinho, tirou a bexiga que lhe cobria a cabeça e apareceu com seus lindíssimos cabelos de ouro.
A mais moça das filhas do rei viu-o e ficou maravilhada com a sua beleza, mas guardou segredo do que vira.
Passado algum tempo, houve no palácio importantes cavalhadas às quais compareceram todos os súditos do rei, bem como reis, príncipes, princesas e fidalgos de outros reinos vizinhos.
Feio teve a idéia de chamar os seus cavalos amigos, e combinar com eles uma partida, e assim fez.
À hora combinada o russo-queimado surgiu, então, deslumbrantemente arreado. Feio, vestido de suas melhores roupas, montou nele e entrou na liça, ganhando todos os prêmios.
Só a filha mais moça do rei desconfiava daquele cavaleiro, mas continuou a guardar seu segredo.
No segundo dia, à hora das corridas, estavam todos curiosos, quando apareceu o cavaleiro misterioso, ricamente vestido, montando o melhor animal, mais garboso e valente do que todos os cavaleiros presentes, e com aquela cabeleira dourada, brilhando aos raios do sol.
O rei, muito intrigado, deu ordem a um batalhão que o prendesse logo depois das corridas.
Feio não demonstrou o menor receio. Entrou na liça e dado o sinal de partida, avançou, ganhado o prêmio.
Agradecendo ao povo, com um sinal de cabeça, o cavaleiro parou diante da princesa mais moça, filha do rei, e, oferecendo-lhe o prêmio. De repente, disparou o cavalo que desapareceu nos ares, quase por encanto.
No terceiro dia, as coisas correram como nos dias anteriores.
Mas o rei havia colocado, em todas as saídas, soldados armados de baionetas, a fim de aprisionarem o jovem cavaleiro.
Feio, cujo êxito devia a seus cavalos amigos, ganhou o prêmio pela terceira vez. Oferecendo-o à jovem princesa, fugiu inesperadamente, sem que o atingissem as baionetas e o chuveiro de balas disparado contra ele.
Ninguém pôde desconfiar quem era o vencedor dos torneios, apesar da grande curiosidade dos fidalgos.
Só a princesinha sabia de quem se tratava.
Só a princesinha sabia de quem se tratava.

VI

Passado algum tempo, o rei anunciava pelos seus arautos, que um leão feroz devastava sua mata e arredores de seu palácio. A quem matasse o terrível leão, daria sua filha mais velha em casamento.
Feio correu a consultar o russo-queimado, se devia tentar tal aventura.
— Ora! Decerto! O leão é o tal, enviado por Satã, para fazer-lhe mal. Ouça o que deve fazer. Arranje um escudo de espelho. Tome sua lança e vá. Assim que o leão vir sua imagem refletida no espelho ficará tonto. Com a mão firme dê-lhe um golpe pela nuca. Com um golpe, só um, o matará. Tome cuidado para não precisar ataca-lo duas vezes. Morto, corte-lhe a ponta da língua e deixe-o onde cair. Guarde o segredo de sua façanha.
Feio agiu exatamente com lhe aconselhara o russo-queimado.
Quando o rei soube que o leão fora encontrado morto, esperou que o herói aparecesse para reclamar a princesa, cuja mão fora prometida. Ficou desapontado, vendo passarem os dias sem que ninguém aparecesse.
Porém, sentindo-se doente, pediu às três filhas que escolhessem seus maridos dentre os membros fidalgos conhecidos.
A princesinha pediu ao pai que consentisse em seu casamento com Feio, o ajudante do jardineiro.
O pai, que estimava muito a filha, respeitou-lhe a escolha, embora fosse o moço humilde, porque fazia do moço o melhor conceito de honesto. Trabalhador e educado.
As duas mais velhas escolheram dois príncipes poderosos que começaram logo por declarar que não queriam para cunhado pessoa tão insignificante, como Feio.
Apesar e tudo, o rei manteve sua palavra; a princesinha casaria com Feio.
Daí depois, o Rei mandou prepara um banquete para o qual as aves deviam ser caçadas pelos seus futuros genros.
Vestido de humilde caçador, Feio partiu cedo para as matas do rei, matou com facilidade dezenas de aves.
Ia retirar-se, quando se encontrou com os dois príncipes que chegavam. Como não o tivessem reconhecidos, propuseram-lhe comprar as aves.
Feio aceitou a proposta, mas exigiu recibo.
À hora do banquete, no meio da maior festa, o rei pediu que cada um dos futuros genros contasse sua maior aventura.
Um deles levantou-se tirando do bolso o toco da língua do leão, disse:
— Até hoje ninguém soube quem matou o leão que assolava as matas e arredores do palácio real. Aguardava o momento para apresentar-me. Esta foi a minha maior façanha.
O segundo disse:
— Tenho aventuras notáveis, mas vou contar apenas a última que é esta: as aves, que comemos neste jantar, foram caçadas por mim. Eram centenas que, com o meu tiro certeiro, caíram uma após outra!
Os dois orgulhosos príncipes olharam com desprezo para Feio e cochichavam contra ele com suas noivas, o que muito fazia sofrer a princesinha.
Levantou-se, afinal, Feio e, calado, como senão tivesse o que dizer, olhava para todos, indignado com o desprezo dos dois. Afinal disse:
— Majestade, duas coisas interessantes tenho para contar neste momento. A primeira é que, numa noite, esperei o leão que assolava o reino e o matei com um golpe, um só golpe, de minha lança. A outra é que hoje pela manhã cacei as aves que acabamos de comer, além de outras que devem encher ainda a real despensa.
Olharam-se todos, sem compreender o que Feio dizia, mas os dois outros fidalgos, pondo-se de pé iam agredi-lo, quando Feio, com toda a serenidade, disse:
— Estão aqui, majestade, as provas do que disse: a ponta da língua do leão e o recibo da compra das aves.
Dizendo isso, arrancou a bexiga de boi que lhe cobria a cabeça, mostrando os seus formosos cabelos de ouro.
Todos reconheceram nele o cavaleiro misterioso das cavalhadas. Naquela hora, ouviu-se lá fora o relincho alegre de três cavalos.
Acabavam de desencantar-se, transformando-se em três príncipes, belos e jovens: haviam cumprido a pena de grave crime.
No meio da confusão daquela hora, todos procuraram os dois príncipes noivos das duas princesas mais velhas. Haviam desaparecido, envergonhados de sua má ação.
Os dois jovens, que se haviam desencantado, apaixonou-se pelas duas princesas e casaram-se com elas.
Quanto ao terceiro príncipe, partiu na mesma hora para o reino de seu pai onde o aguardavam o trono e uma jovem princesa para noiva.
Feio, que se ficou chamando depois o Príncipe Maravilhoso, casou com a princesinha. Veio a saber de sua história, da angústia da sua velha mãe que todos os dias, ajoelhada pedia a Deus que amparasse seu filho desaparecido, com o misterioso cavalheiro.
Conseguiu encontrar seus pais e irmãos, amparando a todos.
Conta-se que todos foram muito felizes.


3 comentários:

  1. Li e fui transportado à minha infância... Meu livro didático: "As Mais Belas Histórias. Que lembrança boa!

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  2. Contavam essa estøria para minha mãe quando criança. E ela me contava também.

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  3. Tenho 70 anos.Tenho o livro original de Lúcia Casa Santa.

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